Ermelinda Maria Araújo Ferreira
Consultora em Arte e Literatura
A loucura, longe de ser uma anomalia, é a condição normal humana.
Não ter consciência dela, e ela não ser grande, é ser homem normal.
Não ter consciência dela e ela ser grande, é ser louco.
Ter consciência dela e ela ser pequena é ser desiludido.
Ter consciência dela e ela ser grande é ser gênio.
Fernando Pessoa, Aforismos e afins
A loucura, longe de ser uma anomalia, é a condição normal humana.
Não ter consciência dela, e ela não ser grande, é ser homem normal.
Não ter consciência dela e ela ser grande, é ser louco.
Ter consciência dela e ela ser pequena é ser desiludido.
Ter consciência dela e ela ser grande é ser gênio.
Fernando Pessoa, Aforismos e afins
Os critérios estéticos, que orientavam os juízos de valor sobre os produtos, foram substituídos por critérios de inserção social dos sujeitos produtores, o que se revela problemático quando se admite que as pessoas não são iguais. No entanto, a diversidade humana, assim como a diversidade ecológica, é uma de nossas maiores riquezas. Negar o gênio equivale a ignorar deliberadamente a existência de um prodigioso e intrigante fenômeno que continua a demandar atenção, desvendamento e cuidado. Significa ainda abster-se de conferir a atenção necessária às mensagens veiculadas pelos textos de qualquer natureza que surgem da natureza excepcional desses indivíduos. Se não para elevá-los a um qualquer panteão de glória – o que desagrada à ânsia de igualitarismo dos atuais tempos de massificação e globalização nas artes – pelo menos para não se ignorar os desafios que nos lançam as suas existências, e não se desprezar os documentos de suas vidas, que são as suas obras.
A aversão da crítica de arte aos gênios na atualidade tem repassado à ciência a primazia da investigação sobre o fenômeno. Em Touched with fire, Kay Redfield Jamison, professora de psiquiatria da Escola de Medicina da John Hopkins University, estudando a elevada incidência do diagnóstico de transtorno bipolar em artistas de diversas áreas, em diversas épocas ao longo da história, e as alternativas de tratamento sugeridas pelas pesquisas recentes, comenta:
What remains troubling is whether we have diminished the most extraordinary among us – our writers, artists and composers – by discussing them in terms of psychopathology or illness of mood. Do we – in our rush to diagnose, to heal, and perhaps even to alter their genes – compromise the respect we feel for their differentness, independence, strength of mind and individuality? Do we diminish artists if we conclude that they are far more likely than most people to suffer from recurrent attacks of mania and depression, experience volatility of temperament, lean toward the melancholic, and end their lives through suicide? I don’t think so. (1994:259)
O que permanece um problema é se estamos reduzindo a importância daqueles mais extraordinários entre nós – nossos escritores, artistas e compositores – quando os estudamos e avaliamos em termos essencialmente psicopatológicos ou comportamentais. Estamos nós – na urgência de diagnosticar, curar e, talvez, até mesmo alterar seus genes – comprometendo o respeito que sentimos por sua diferença, independência, energia mental e individualidade? Nós os reduzimos se chegamos à conclusão que eles são mais suscetíveis do que a maioria das pessoas a sofrer de ataques periódicos de mania obsessiva e depressão, qualquer temperamento instável que leva à melancolia e ao suicídio? Eu não penso assim.
Ao contrário do ponto de vista científico – para cujo reducionismo chama a atenção o comentário da pesquisadora –, a perspectiva tradicional da crítica de arte, por se concentrar antes na qualidade das obras do que nas biografias dos artistas, sempre tendeu a salvaguardar o valor humanístico de suas produções, conferindo a essas pessoas um passaporte para a vida e para o reconhecimento social. Mas a atual rejeição da genialidade pela academia – salvo raras vozes como a do polêmico crítico americano Harold Bloom (autor de um ousado compêndio intitulado Gênio, no qual insiste, apesar das limitações previsíveis num estudo deste calibre, na defesa da excepcionalidade na criação artística) – põe em risco a própria existência destes seres, que se tornam alvos de uma ciência conduzida por valores positivistas e pragmáticos, cegos a tudo o que transcende o universo semântico no qual se instrumentalizaram.
Para a definição de gênio em seu livro, Bloom propõe uma formulação muito simples, que vale a pena a pena lembrar e que pode ser transposta para outras artes além da literatura:
Todas as mentes criativas exemplares aqui incluídas contribuíram para a expansão da consciência dos respectivos leitores e ouvintes. As questões que devemos colocar a qualquer escritor são as seguintes: ele ou ela alarga a nossa consciência? E como isso se dá? Sugiro um teste simples, mas eficaz: fora o aspecto do entretenimento, a minha conscientização foi aguçada? Expandiu-se a minha consciência, tornou-se mais esclarecida? Se não, deparei-me com talento, e não com gênio. Aquilo que há de melhor e
de primordial em mim não terá sido tocado (2003).
Este livro-catálogo nos apresenta um caso singular no contexto dessa discussão. De um lado, por resgatar e trazer a público, após uma década da morte da artista, os resultados da atividade silenciosa que ela desenvolveu, sobretudo durante os últimos dez anos de sua reclusão voluntária e de seu afastamento deliberado de toda vida social – decisões que representaram uma verdadeira guinada numa história pessoal até então marcada por experiências de sucesso e de intensa atividade intervencionista nos circuitos culturais e midiáticos –; e de outro, por atestar o incansável empenho da curadora de sua obra e sua sobrinha Márcia Miranda Lyra, fundadora do Instituto Cultural Ladjane Bandeira, em reacender o interesse dos estudiosos e apreciadores de arte sobre a peculiaridade e a flagrante atualidade do projeto que se intitula Biopaisagem.